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O líquen sobre a lápide

Por : Fernando Neubarth
Médico e escritor. Especialista em Clínica Médica e Reumatologia. Chefe do Serviço de Reumatologia do Hospital Moinhos de Vento. Presidente da Sociedade Brasileira de Reumatologia/SBR 2006-2008. Presidente do Conselho Consultivo da SBR.



18 Janeiro, 2023

https://doi.org/10.46856/grp.22.ept145

"É preciso alertar, orientar e desmistificar sobre uma condição muito comum e que acomete a pele, mas que também pode afetar as articulações, causar dor e sofrimento. Eis uma breve crônica de um estigma através dos séculos."

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E- ISSN: 2709-5533
Vol 4 / Jan - Jun [2023]
globalrheumpanlar.org

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O líquen sobre a lápide

Autor: Fernando Neubarth: Especialista em Clínica Médica e Reumatologia. Correo: neubarth@terra.com.br

DOI: https://doi.org/10.46856/grp.22.ept145

Citar como: Neubarth F. El liquen en la lápida. Global Rheumatology. Volumen 4 / Ene - Jun [2023]. Available from: https://doi.org/10.46856/grp.22.ept145

Data de recebimento: 1/12/2022

Data aceita: 15/12/2022

Data de Publicação: 18/01/2023


A psoríase é provavelmente tão antiga quanto a humanidade. Apesar de sua freqüência, cronicidade e visibilidade, persiste a dificuldade em se encontrar uma descrição inequívoca da mesma em registros médicos antigos. Diferentes autores referiam-se a psoríase com nomes variados, ao mesmo tempo muitas doenças diferentes recebiam a mesma denominação. 

Somente no final do século 18 a psoríase passou a ser reconhecida como uma entidade distinta. No entanto, até o século 20 as descrições continuaram vagas. Soma-se a isso a compreensão algo tardia da condição reumática para além da doença de pele, a artrite psoriásica. Hoje a psoríase é bem definida como uma doença na qual participam fatores genéticos, ambientais e imunológicos.

Essa história de desconhecimento e indefinições também é responsável pelo medo associado a uma inexistente possibilidade de contágio e pelo imponderável sofrimento de quem tem psoríase, incomensuravelmente maior pela longa elaboração de um preconceito que ainda hoje repercute. Isso muito se deve à confusão diagnóstica com a hanseníase, exemplo maior de estigma e segregação social associado a uma enfermidade na história da civilização.  

O equívoco é tão grande, que, ao contrário do que majoritariamente se supõe, a hanseníase (“lepra”) não é “moléstia bíblica”. Nenhum de seus sinais característicos figura no Velho Testamento. O “tsara’ath” dos livros sagrados hebreus significava degradação moral e se baseava numa confusa e variada série de alterações de pele e couro cabeludo que poderiam corresponder hoje, mais apropriadamente, às parasitoses, piodermites, vitiligo, pênfigos e à própria psoríase. Seu portador era considerado imundo pelo sacerdote e banido do convívio social, enquanto que roupas com “tsara’ath”, provavelmente apenas mofadas, eram queimadas e destruídas, carregando-se os restos e até mesmo as pedras das paredes das casas para um “lugar imundo”. 

Por iniciativa de Ptolomeu II, o Filadelfo, a Torá, os Neviim e os Ketuvim hebraicos foram traduzidos para o grego e transformaram-se na Bíblia. Ao depararem com o “tsara’ath” os 70 ou 72 letrados judeus encarregados da tarefa, não acharam nada melhor que “lepra”, palavra grega significando descamação e esfoliação (do mesmo radical de “livro”), a qual, possivelmente, nessa fase helênica, teria conotação de impureza ou desonra. Certamente não se referiam à hanseníase, já que esta era conhecida pelos povos mediterrâneos da época sob outros nomes - “elefantíase” entre os gregos.

Um exemplo emblemático é uma cena do romance Ben Hur: uma História dos Tempos de Cristo, do general norte-americano Lewis “Lew” Wallace (1827-1905), publicado em 1880 e levado ao cinema em mais de uma versão. Nessa passagem, a mãe e a irmã do personagem Judá Ben Hur, confinadas entre outros banidos “leprosos”, acorrem entre a multidão que aguarda ansiosa a chegada de Jesus, aquele que, todos diziam, acolhia e curava os enfermos: 

 

– Mais perto, minha filha, vamos nos aproximar. Não pode nos ouvir - disse a mãe. 

 

Ela se levantou e cambaleou para frente. Suas espantosas mãos estavam levantadas e ela gritou com horrível estridência. O povo a viu, com seu horrível rosto e se detiveram surpresos, um efeito pelo qual a miséria humana extrema, visível como neste caso, é tão potente quanto à majestade em púrpura e ouro. Tirzah, um pouco atrás dela, caiu demasiado débil e assustada para seguir adiante.  

 

– Os leprosos, os leprosos! – gritavam.  Apedrejem-nos! – Malditos de Deus! Matem-nos!. ]

 

Nada que justifique, mas seria mesmo lepra o que tinham Tirzah e sua mãe?

 

John Updike (1932-2009), escritor, novelista e crítico literário norte-americano, portador de psoríase, descreveu sua condição em texto literário (From the Journal of a Lepper) e em um relato memorialístico (At War with my Skin): "A lepra não é exatamente o que eu tenho, mas o que na Bíblia se chamava lepra provavelmente era essa coisa, que tem um nome grego sinistro que me dói escrever. A forma da doença é a seguinte: manchas, placas e avalanches de excesso de pele... Expandem-se e migram lentamente através do corpo como o líquen em uma lápide. Eu sou prateado, escamoso. Poças de flocos se formam onde quer que eu descanse minha carne... Minha tortura é superficial... Nós - os leprosos - somos luxuriosos, apesar de sermos repugnantes de amar com um olhar aguçado, apesar de odiarmos olhar para nós mesmos. O nome da doença, falando espiritualmente, é humilhação."

Dos primórdios até o século 19, quando se preconizava que a psoríase era o resultado de um distúrbio metabólico interno e o arsênico, seu tratamento sistêmico de escolha, foram propostas muitas terapias.  Dentre as tópicas, a fototerapia e algumas bastante peculiares como a ictioterapia: a utilização de peixinhos removedores de escamas. Muito se avançou até o século 21, quando se reconhece nela uma doença do sistema autoimune, permitindo o desenvolvimento e a utilização de medicamentos biológicos e uma melhor compreensão de fatores psicossociais envolvidos no agravamento e, também, no suporte terapêutico. Os bons resultados, baseados na ciência, abrem a perspectiva de minimizar uma longa história de sofrimento e dor que se sente no âmago e à flor da pele, principalmente pelo preconceito que a ignorância - sempre ela - impõe.


P.S. Em 2018, fui convidado para escrever um capítulo no livro "Artritis psoriásica", editado pelos colegas Rafael Alba Fériz, Roberto Muñoz Louis, Luis R. Espinoza y John D. Reveille e publicado na República Dominicana. Detive-me na história da doença propriamente dita e repassei o convite para uma colega dermatologista, a Drª Jaquelini Barboza da Silva, numa divisão de tarefas e incentivando-a a contar a história dos tratamentos. O texto acima é um trecho, uma parte do meu quinhão do que resultou nessa publicação.  (Neubarth, F; Silva, JB. Historia y evolución de la artritis psoriásica. In: Fériz, RA; Louis, RM; Espinoza, LR; Reveille, JD. (Org.). Libro Texto Artritis Psoriasica. 1ed. Santo Domingo, Rep. Dominicana: Editora Corripio, 2019, v. 1, p. 3-20.)

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