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Virtuosa Empatia

Por : Fernando Neubarth
Médico e escritor. Especialista em Clínica Médica e Reumatologia. Chefe do Serviço de Reumatologia do Hospital Moinhos de Vento. Presidente da Sociedade Brasileira de Reumatologia/SBR 2006-2008. Presidente do Conselho Consultivo da SBR.



25 Julho, 2023

https://doi.org/10.46856/grp.22.ept178
Cite as:
Neubarth F. Virtuosa Empatia | Global Rheumatology Vol 4 / Jul - Dez [2023] Disponível em: https://doi.org/10.46856/grp.22.e178

"Cada vez mais instituições, como a PANLAR, promovem a aproximação com os pacientes. Uma verdade que os bons médicos sabem desde sempre. É preciso escutá-los mais, eles têm muito a nos ensinar "

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E- ISSN: 2709-5533
Vol 4 / Jul - Dic [2023]
globalrheumpanlar.org

Coluna

Virtuosa Empatia

Autor: Fernando Neubarth: Especialista em Clínica Médica e Reumatologia. neubarth@terra.com.br

DOI: https://doi.org/10.46856/grp.22.ept178

Citar como: Neubarth F. Virtuosa Empatia | Global Rheumatology Vol 4 / Jul - Dez [2023] Disponível em: https://doi.org/10.46856/grp.22.e178

Data de recebimento: 11 de julho / 2023
Data aceita: 18 de julho / 2023
Data de Publicação:


Maria das Dores.

Das dores noturnas,

das dores sofridas,

das dores sentidas,

das dores de amores que nunca viveu.

Mas um dia, Maria aos males deu fim.

Maria das Dores, das dores, morreu.

 

Era doutorando, em formação no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, quando escrevi o poema acima. Foi há pelo menos quatro décadas, em uma agenda que me acompanhava à época. Veio à lembrança instigado pela trajetória da atriz Dani Valente e sua convivência como paciente de uma doença pouco compreendida (a fibromialgia) e que podemos conhecer pelo relato generoso, didático, honesto e mesmo terapêutico que assoma do seu livro “A pessoa mais feliz do mundo”.

Fibromialgia é uma síndrome, um conjunto de sinais e sintomas variáveis, ao mesmo tempo múltiplos e individuais. A sensação de dor está bastante amplificada: um simples toque, um abraço, é um imenso desconforto. Pode-se sentir dores no corpo todo e cansaço, com dificuldade para dormir ou acordar como se não tivesse repousado. O paciente também pode ter dificuldades de concentração e de memória, ansiedade, formigamentos, dor de cabeça, tonturas, mudanças de humor, depressão, alterações intestinais e urinárias.

O diagnóstico é essencialmente clínico, ainda não há exames que comprovem a condição. Durante muito tempo foi desacreditada, tanto por quem é da área de saúde quanto por familiares e os próprios pacientes. Sem encontrar "uma causa", após uma exaustiva e infrutífera saga a diferentes especialistas, persistem dúvidas - um descrédito que impõe brutal derrota à autoestima. Mas a dor sentida é real.

Atualmente, sabe-se que existe uma falta de regulação da dor, em parte à custa de alterações nos neurotransmissores, substâncias químicas que são produzidas pelas células nervosas - os neurônios. Alguns neurotransmissores agem diminuindo a dor, e outros a intensificam. A interpretação da dor no cérebro sofre muitas influências, entre elas as que decorrem das emoções, e quem tem fibromialgia sente a dor em grau potencializado.

Fato bem usual: Dani demorou a receber um diagnóstico. A exemplo de tantos, chegou a sentir um paradoxal alívio ao saber que o que tinha de fato existia. A fibromialgia nos ensina a importância da escuta que deve ser dada ao paciente. É preciso saber ouvir as suas queixas, e a busca pelo entendimento de mecanismos causais e de alívio e até de mensuração mais adequada da dor tem envolvido pesquisadores e gerado um olhar mais atento e compreensivo. Talvez seja tarde para aquela Maria, mas não precisa continuar sendo assim. É o que também nos ensina a Dani.

Mudanças de comportamento são importantes e começam com a percepção do que sentimos; podem ser trabalhadas com terapias e readequação de hábitos. Exercícios físicos apropriados reforçam as estruturas corporais. O condicionamento físico torna o corpo mais resistente à dor, além de produzir substâncias que melhoram o humor e aliviam o desconforto. Dentre as atividades recomendadas estão as aeróbicas (ciclismo, caminhadas e corridas leves e regulares, que auxiliam a manter o peso e liberam endorfinas), atividades aquáticas (natação e hidroginástica), pilates (que atua na postura, respiração, flexibilidade, equilíbrio) e Tai chi chuan. Técnicas de fisioterapia e acupuntura podem auxiliar. Analgésicos e anti-inflamatórios tem pouca resposta, mas medicamentos que regulam emoções e agem sobre os neurotransmissores podem ser úteis, em conjunto e facilitando os demais cuidados. Ansiedade e depressão são comuns na fibromialgia. A expressão mens sana in corpore sano (“mente sã em corpo são”) é adequada quando se fala em tratar essa doença.

Dani Valente se baseia na experiência pessoal. Mas o que impressiona é o compromisso que ela demonstra em buscar mais conhecimento. Ela também se inspirou em Hipócrates, que há milênios preconizava: "Que seu remédio seja seu alimento e que seu alimento seja seu remédio". Hoje, ela cuida e cuida dos outros, estimulando a boa nutrição.

Ela acompanha o esforço da ciência em comprovar a relação entre o hábito alimentar e a sua influência sobre enfermidades crônicas, entre elas as denominadas autoimunes. Esse é outro mérito da autora: traz ao conhecimento dos leitores a importância que hoje se dá à microbiota e à epigenética. Uma visão apropriada da ecologia humana e a percepção do quanto dependemos da equilibrada estabilidade dessa variada e imensa população de tripulantes e passageiros microscópicos que abrigamos em nosso intestino - e que fazem de nós uma metáfora de uma espécie de nave espacial. Conceitos que se renovam e voltam a valorizar cientistas como Paul Ehrlich (1854-1915) e Ilya Ilyich Mechnikov (1845-1916), ambos premiados com o Nobel de 1908. Ehrlich, imunologista que ajudou a caracterizar anticorpos, entendia que o sistema imunológico teria mecanismos de proteção que não permitiriam que ele se voltasse "contra si mesmo". É possível predizer que no futuro nem se fale mais em doenças "auto" imunes, elas seriam provocadas por esse desequilíbrio.  E Mechnikov foi o primeiro a estudar os probióticos.

Dani Valente já era respeitada como excelente atriz e roteirista, atividades que dependem da empatia e da capacidade de viver o sentimento alheio. No papel que agora representa, a partir de suas vivências parece ir além. Estimula a mudar enredos de vida e dá novo sentido a personagens que parecem fadados à dor e ao sofrimento. Admirável generosidade, merece aplausos e a nossa leitura.


(Dani Valente, atriz e roteirista brasileira, hoje vive nos EUA e exerce a profissão de nutricionista holística. O livro em que conta a sua história, num relato ao mesmo tempo confessional e altruísta, de como aprendeu a enfrentar a sua doença crônica, a fibromialgia, foi publicado com o titulo "A pessoa mais feliz do mundo", Maquinaria Sankro Editora, São Paulo, Brasil, 2022.)

 

 

 

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