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O retorno dos bárbaros

Por : Alberto Palacios
Jefe del Departamento de Inmunología y Reumatología del Hospital de los Angeles Pedregal en CDMX



08 Julho, 2022

https://doi.org/10.46856/grp.22.ept126

"Não há médico que não tenha visto um paciente morrer. Nem uma morte comum. Nenhuma morte irrelevante. Toda morte, por muito disfarce clínico que lhe seja imposto, evoca a própria fragilidade."

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O retorno dos bárbaros

Alberto Palacios MD

Certa vez escrevi que “toda doença crônica implica uma intimação com a morte”. Neste sentido, e para dar um fio à minha história, somos obrigados a entender que qualquer doente que nos procure com dores articulares, lesões vasculares ou comprometimento orgânico está sofrendo com a incerteza de ver a sua existência jogada no abismo da deficiência ou da perda inelutável.

Como especialistas na dor somática e na integridade do tecido conjuntivo, é preciso parar para ouvir esse lamento afetivo e abrir espaço à sua elaboração para conciliá-lo com o tratamento farmacológico e oferecer uma solução digna e esperançosa ao drama que estamos tratando. Que assim seja, sempre.


O dia amanheceu ameno e apresso-me a abrir as cortinas. É uma travessura que nós enfermeiros repetimos com frequência para acordar ao Eamon, um avô que apreciamos muito e que está convalescendo por causa da sua última cirurgia. Em Limerick, um dia com poucas nuvens é uma alegria que vale a pena compartilhar, especialmente para um moribundo.

Desde a sua primeira internação identificamos que o seu câncer de fígado não tem cura. Ele se espalhou para ambos os lóbulos, tem metástases nos pulmões e nos ossos, na medida em que esta intervenção foi apenas para descomprimir os ductos biliares. Bebedor insaciável, Eamon cresceu nos estaleiros do estuário, onde uísque e cerveja eram uma moeda necessária para socializar e matar a fome.

Nenhuma família o culpava, desde que os trabalhadores permanecessem leais, evitassem as prostitutas, não faltassem à missa e pagassem em dia todas as sextas-feiras. Ouvi-los roncar era a música estridente com que dormiam e acordavam aos domingos.

A cidade inteira sabia que os estivadores – como mineiros e limpadores de chaminés – morriam jovens, de câncer de pulmão, testículo ou fígado. Antes dos quarenta, as esposas de Limerick viravam pais, traziam filhos no mundo e ficavam viúvas, a pobreza era a sua única constante. Apenas as solteironas ficaram para cuidar das viúvas e dos velhos abandonados que optaram por trabalhos menos exigentes em outra vida. Um deles era Eamon, sobrevivente de hepatite alcoólica, enfisema e ataques cardíacos, por ter bons genes, pois gostava de se exibir. A sua esposa Mary, por outro lado, morreu de tuberculose durante a fome da batata, deixando para trás duas filhas e um filho que emigraram para a Inglaterra assim que puderam deixar a escola.

-Lembre-se que é um ótimo dia, Eamon, - eu disse para ele depois de servir um copo de água e esperar que ele acordasse.

-Mmmm -ele rosnou com raiva. -Não tenho mais memória dos seus rostos, O'Brien. Eles deixaram este paraíso há muito tempo.

O seu tom cínico me faz sorrir, embora eu tema silenciosamente que a visita possa ser desagradável para os seus filhos, que localizei há apenas alguns dias peara contar a eles sobre o diagnóstico e a morte iminente do seu pai. Uma amante cujo nome permanece anônimo debaixo do travesseiro é a única que enviou flores nestas duas semanas. Felizmente elas são feitas de papel, para não murcharem e iluminarem um pouco o ambiente. Ontem pedi ao Timothy e à Fiona que limpassem o quarto com cuidado enquanto damos banho no paciente; pelo menos para torná-lo menos fedorento e mais apresentável para a sua família.

– Posso fazer a tua barba, Eamon? – pergunto, já com a navalha untada com creme de barbear na mão.

– Mas não bote aquela loção que vocês usam e que queima por horas. Prefiro cinzas a esse perfume sufocante.

– Chega, chega – reclamo afetuosamente. – No domingo você disse que a Mabel, a enfermeira obstetra, piscou para você.

– É vesga, bobo! – ele exclama e solta uma gargalhada.

O café da manhã chega morno e o Eamon come com relutância, com aquele desgosto que nenhum paciente sabe esconder nessa altura. Mas ele se deixa vestir com uma pouco de entusiasmo na voz, olhando de vez em quando para o relógio na parede. Às onze horas, pontualmente, os visitantes são admitidos. Deixo-o sozinho antes de receber aos seus três filhos, ciente de que ele precisa meditar, pensar o momento e guardar as lágrimas que não derramou.

A primeira a entrar é a Selma, a mais nova, enquanto os seus irmãos estacionam o carro. Ela é uma jovem enérgica, gordinha e de bochechas rosadas. Os seus olhos azuis brilham mais do que o dia e se adverte com medo de reconhecer este homem moribundo que não vê há duas décadas. Ela fica parada na porta, hesitante, como se esperasse uma ordem de cima antes de se aproximar do paciente. Atrás dela, sussurro: — Entre, não morde.

Quando ela se atreve a abraçar ao seu pai, Ellen e Jack, os dois mais velhos, que já têm cabelos grisalhos, entram na sala. Mais magros do que a irmã, elas compartilham as feições celtas do pai e um olhar límpido sobre as olheiras, que lembram aos que vêm do mar. O cheiro de tabaco é evidente em Jack quando ele passa por mim, como se ele tivesse acabado de apagar o cigarro. Espero que este encontro o ajude a repensar sobre o seu vício – pondero, impulsionado pelas minhas pretensões de educador em saúde.

A Selma começa a chorar, levantando-se da cama; é evidente que ela não estava preparada para ver ao seu pai no seu leito de morte. Enquanto a Ellen tenta consolá-la, Jack aperta a mão do velho e pede permissão para se sentar ao lado dele. O Eamon faz um esforço para recuar para lhe dar espaço, mas a sua estrutura frágil não o ajuda e eu tenho que pedir desculpas para entrar e ajudá-lo.

– Quão sério é isso? – pergunta a irmã mais velha. De repente, descubro suas rugas, o seu rosto magro, o seu ar de tragédia.

- Desculpe? Eu digo, um pouco desequilibrado, surpreso por ela estar falando comigo.

Com um aceno de cabeça do Eamon, tento descrever em termos leigos a sua condição e seu prognóstico. Sempre evito entrar em detalhes grotescos ou escorregar para uma inflexão melancólica, que sei que irrita aos parentes.

Os três me escutam com notável atenção, sem deixar de olhar para o pai quando falo de metástases, complicações ou necessidade das duas últimas cirurgias. O meu discurso dura apenas sete minutos, mas parecem cinco anos em meio deste clima de tensão e ansiedade.

– Obrigado, Felix – diz Eamon, satisfeito com minha versão e o meu sotaque respeitoso. – Agora me deixe com eles por um momento. Eu quero saber o que eu estupidamente perdi dos seus projetos e aventuras, deixando-os voar. Só quero recuperar o orgulho que sinto por cada um e saber se neste curto espaço que Deus reservou para mim, posso receber a sua compaixão e apreço. Eu partirei tranquilamente, lhe asseguro.

Fechando a porta atrás de mim, encontro a Kathy parada ao lado da Fiona, as minhas duas colegas enfermeiras, ä empregada Lizzy e ao zelador, Ralph – de braços caídos e roupas de rua – que costumava passear ao seu amigo moribundo pelo jardim nas tardes sem. Todos eles me incitam com olhos tristes em uníssono, ansiosos por saber se o velho Eamon, que tanto nos ensinou sobre o riso e o valor da vida, finalmente se reconciliou com o dele.

Pós-escrito. Não há médico que não tenha visto um paciente morrer. Nem uma morte comum. Nenhuma morte irrelevante. Toda morte, por muito disfarce clínico que lhe seja imposto, evoca a própria fragilidade.

Por isso é tão difícil afirmar preceitos, recomendar soluções, praticar suicídio assistido ou implorar penitência. A morte é a premissa mais forte e genuína da vida, embora permaneça como o inadmissível, o sinistro, o venerável.

Em um sentido mais prático, a proximidade da morte é um marco de reflexão e oportunidades para compreender e aliviar o sofrimento humano. Os extremos da vida editam o mais verdadeiro junto com o mais enorme de cada assunto. Alguns anos atrás, o Dr. Bill Nelems, um oncologista cirúrgico da Universidade da Colúmbia Britânica em Vancouver, fez uma observação fascinante e útil para pacientes moribundos. Por meio de inúmeras entrevistas guiadas com abordagem psicoterapêutica, ele descobriu que os pacientes com câncer que vão morrer têm cinco preocupações fundamentais:

  1. A sua nutrição. Desde que alimentos lhes permitirão ingerir a sua doença fatal, até os sabores, cheiros e valores nutricionais que devem aproveitar antes que chegue a hora da sua morte.
  1. A sua aparência física. Que deformidades as cirurgias paliativas, quimioterapia ou radiação causarão? Como eles serão vistos pelos seus entes queridos? A maioria concorda que sua imagem corporal está integrada ao seu sofrimento.
  1. O seu Legado. Embora as preocupações financeiras e familiares ocupem grande parte do pensamento do doente terminal, é sobretudo a herança afetiva que causa a sua insônia.
  1. A sua vida sexual. Por mais surpreendente que pareça, muitos pacientes de câncer debilitados buscam ou lembram melancolicamente sua vitalidade erótica. A vida sem a efusão sensual é completamente ofuscada e esse valor transcendental que a entrega do amor acarreta nunca é perdido.
  1. As reações farmacológicas. Claro que, mais do que a própria morte, o que sofremos com a morte é o sofrimento que a precede. Deixar de existir é lugar-comum, mas o desprazer de vomitar, sentir dores somáticas, emagrecer ou expelir fluidos tóxicos é intolerável no registro imaginário, que domina as nossas vidas do início ao fim.

Com estes elementos, há muito trabalho a fazer. Mais do que a cumplicidade ou a compaixão que algumas terapias tanatológicas propõem, o doente terminal quer a vida, o que dela resta, tão simples e singelo como quando a mãe nos alimentou, nos vestiu e nos ensinou a amar com seus encantos.

Nota de rodapé. O título faz alusão à obra-prima “Waiting for the barbarians”, publicada em 1982 pelo Prêmio Nobel de Literatura John M. Coetzee, e especialmente ao belo filme “Les invasions barbares” do Denys Arcand (Canadá, 2002), vencedor do Prêmio Óscar ao melhor filme estrangeiro em 2004.

 

 

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