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TEMPOS MODERNOS

Por : Alberto Palacios
Jefe del Departamento de Inmunología y Reumatología del Hospital de los Angeles Pedregal en CDMX



26 Novembro, 2020

https://doi.org/10.46856/grp.22.e031

"Somam mais de cem mil mortes garantidas (e contando); isto não para. Não são gráficos ou slides."

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Somam mais de cem mil mortes garantidas (e contando); isto não para. Não são gráficos ou slides. Tenho visto o rosto da morte nos doentes marginados, diabéticos e cujos pulmões raros inservíveis. São esses mártires que se juntam aos outros sem voz no bairro próximo ao meu hospital. Dúzias mais de falecidos que pela sua irrelevância não contaminam as flamejantes cifras oficiais. As suas famílias e eu estamos ahítos da banalidade e o triunfo que divulgam os porta vozes do governo. Aqui o único que tem sido vencida é a verdade.

Ao aproximar-me à minha janela, após ter recuperado alguns pacientes com coronavírus, posso sentir a aura e a atmosfera um pouco mais limpa, o que me permite distinguir as margens da minha cidade. Escuto à Sarah McLachlan cantando “Angel” desde a sua casa e penso com um otimismo medido que nos espera um futuro possivelmente mais contemplativo, até mais solidário.

Creio, à força do fervor renovado, que tomaremos as ruas com prudência, que os botecos nos verão brindar sem medo, beijar-nos de novo, levantar a alma e reescrever os nossos silêncios. Seremos menos e teremos esse peso de não ter jogado os salva-vidas no tempo, quando o furacão se aproximar. Mas também nos acharemos qual crianças, usurpando o ar, as praças, os cantos que tinham sido banidos em outras horas.

Pensem por um momento em todos os erros que como espécie tivemos. Destruímos ao nosso redor, impormos asfalto e concreto onde haviam jardins naturais. Nós cortamos as florestas mais tupidas para desenhar estradas e fazer móveis ou pisos tirados pela soberania e pelo desprezo pelas outras espécies.

Meditem comigo sobre os erros mais recentes: pensar que poderíamos conter o avanço do SARS-CoV-2 com paupérrimas medidas de isolamento. Que sararia com antivirais que não têm funcionado para outras doenças semelhantes. Que poderíamos diminuir os desfechos porque somos invencíveis o pensamos (como à Didier Raoult ou a sua figura de proa o Donald Trump) que por imposição pode-se empregar um fármaco sem que se tenha estudado convenientemente. Pior ainda, que a imunidade de rebanho (herd immunity) se consegue sem maior problema, porque um governante ou unos pseudo pregadores da ciência podem prescindir de muitos seres humanos desde o conforto dos seus santuários.

Eu não. Para mim, como médico e observador das almas, qualquer vida tem um valor entranhável. Sem prejuízo de raça, religião, nível socioeconômico e as suas conquistas ou méritos. Quando eu recebo um paciente, aceito que ganhei uma qualidade- não sem esforço e dedicação- que me obriga a protegê-lo e melhorar a sua saúde com a melhor das minhas capacidades. Ao início desta pandemia, não tinha muita ideia do que oferecer-lhes aos doentes do Covid-19 para evitar um desfecho fatal; mas estudei muito e tenho conseguido entender que ante o ataque do vírus contra o endotélio vascular, é preciso proteger o fluxo do sangue, evitar coágulos e diminuir o furacão de citocinas que o caracteriza. Porém, nas minhas pequenas conquistas clínicas não acho nenhuma posição heroica. Pelo contrário, parece precoce essa libertação da mobilidade que adoptamos há uma semana, assim como achar que temos acabado a um inimigo tão agressivo. Os contágios continuam aumentando e falar em “nova normalidade” no momento mais crítico da pandemia é um exercício da teimosia, no mínimo.

Os dados dos outros países (a Espanha, a Itália e a França) que sofreram graves perdas mostram que decidiram reduzir os controles de confinamento quando garantiram o menor nível dos contágios. Nós temos dado à economia uma importância maior, sem garantir as condições adequadas de proteção numa população na maioria pobre e obesa. Espero que não tenhamos que reclamar aos nossos governantes a sua falta de juízo, porque o custo de perder vidas desnecessariamente será muito alto.

Agora que as ruas da minha cidade são pouco transitadas e os seus moradores emascarados e com medo, penso em criar novamente na minha fantasia esses cantos nos quais eu cresci, quando o tempo cavalga com inocência e nós nos achamos donos do planeta. Criamos olimpíadas e campeonatos de futebol nos estádios que desafiavam a majestosidade arquitetônica de outras latitudes. Apesar de que os nossos governos, em um impulso de raiva, tinham calhado a voz dos estudantes e outros rebeldes que exigiam uma democracia e menos anarquia.

Porém, podíamos sair e pegar o céu por assalto. A violência vinha de um estado atrasado e repressivo que queria manter os seus privilégios, calhando a voz dos necessitados e esquecidos. Os roubos acabaram com uma solidariedade quase inocente entre tantas injustiças. Mesmo havendo “güeritos” e “caifanes” que contrastam socialmente, e que, sem dúvida, afrontam muitas situações, a sensação coletiva é que havia espaço para todos. 

Acho que ocorreram três fenómenos históricos que incrementaram a desestabilização social e criaram um clima geral de insegurança. Um deles foi a devastação do campo e a população rural em troca por uma concentração desmedida nas cidades. Cresceram até virarem inabitáveis e, mais especificamente, as faixas marginais lotaram de gente de outros locais vindo das planícies cada dia mais desoladas deste país. Isso pela sua vez favoreceu a migração ao norte, tirando ainda mais das comunidades sem recursos. Como disse o Adolfo Gilly, a criação de um sistema de parcelas improdutivas foi o pior erro econômico do Cardenismo.

Em segundo lugar, e tão grave quanto o primeiro, está a perpetuação do nepotismo sustentado por um único partido profundamente corrupto e organicamente tribal. Elites recorrentes (como uma oligarquia imperial que herdou posições e privilégios) saquearam o país e enfraqueceram a democracia até que se tornou desprezível, inoperante e indesejável. Esquecemos como e por que ir às urnas, porque não importava se aparecêssemos ou deixássemos tudo nas mãos dos próprios sátrapas.

Terceiro, inevitavelmente nos tornamos a principal rota da droga para o maior mercado do mundo. Essa condição de transportadores e não de produtores levou a um desequilíbrio socioeconômico sem precedentes. Entraram fluxos de dinheiro sujo com os quais ninguém havia sonhado. Com isso, foram criadas gangues assassinas, assassinos para implementá-las e uma mudança na percepção social dos poderes que uma sociedade indomável como a nossa (assim como a Colômbia, o Norte da África ou o Sudeste Asiático) não estava preparada para enfrentar.

Os resultados eram previsíveis. Mais violência, mais pobreza, mais descontentamento e a ingovernabilidade que temos sofrido.

Em meio a toda essa dor, a pandemia estourou. Obviamente, fomos pegos desprevenidos e insuficientemente preparados. Hoje o nosso povo está alarmado e nas garras de uma hipocondria generalizada que não se resolve com somas trágicas ou promessas quebradas. Dissolver a "jornada de distância saudável" quando as infecções se multiplicam é o mesmo que adoecer a população, deixando-a por conta própria.

Não temos que esperar que um presidente ou sua comitiva sejam os salvadores da pátria, isso não é crível nem mesmo em livros didáticos gratuitos. Mas podemos confiar que a distribuição e aplicação dos recursos em saúde são justas e proporcionais, que a busca por respostas farmacológicas e vacinas é estimulada, além de receber um guia consensual de quais setores da sociedade merecem mais cuidados ou maior proteção.

Os pobres, os velhos e os doentes crônicos estão morrendo desnecessariamente. Pergunto-me convosco: não é dever do Estado evitá-lo, restaurar a nossa credulidade em medidas concretas de assistência e saúde em vez de nos assumirmos como contabilistas dos danos?

Recordo o que a médica inglesa Rachel Clarke disse com ousadia: “A verdadeira métrica do sucesso diante desta pandemia é o número de mortes que podem ser evitadas. O objetivo da nossa resposta ao COVID-19 não é achatar as curvas, melhorar as notícias ou publicar manchetes ilustres, proteger os sistemas de saúde ou inventar equações matemáticas absurdas: é e deve ser a prevenção de mortes desnecessárias "

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