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O vazio que assombra a travessia

Por : Fernando Neubarth
Médico e escritor. Especialista em Clínica Médica e Reumatologia. Chefe do Serviço de Reumatologia do Hospital Moinhos de Vento. Presidente da Sociedade Brasileira de Reumatologia/SBR 2006-2008. Presidente do Conselho Consultivo da SBR.



15 Dezembro, 2020

https://doi.org/10.46856/grp.22.e051

"For death is not the end And I'll see you in my dreams. "

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Em Porto Alegre, ao lado do hospital onde estava meu amigo, há uma ponte. Sobre a ponte, o distraído que plantava palmeiras seguiu seu trabalho sem se dar conta que atravessava o riacho. Resultado: fez o que parecia impossível, e da aparente ilusão uma realidade. É só olhar bem, acima da ponte em direção aos céus erguem-se majestosas palmeiras, abaixo, onde a inocente ignorância botânica e o senso estético adivinhariam raízes em igual proporção, o vazio. O vão livre, a magia e o mistério.

Palmeiras sobre a ponte do riacho

Palmeiras sobre a ponte / Arte gráfica: F. Neubarth 

 

Há coisas que não se veem. Aprendizados demoram, e há malas que vem de trem. Houve um tempo em que ter um lenço branco, limpo, bem passado, era estar preparado para qualquer eventualidade no trajeto, do suor à lágrima, a esfoladura na queda, da proteção no assento empoeirado ao armistício na declaração de uma guerra. 

Tenho usado máscaras, mas sinto falta de lenços. Especialmente à beira do cais. 

O silêncio contrito daquele homem já é uma das imagens mais eloquentes no inventário que restará desse tempo de pandemia. A figura do jovem sentado no parapeito da janela de um hospital palestino na cidade de Hebrom, na Cisjordânia, correu o mundo. Numa zona conflagrada, não restou a possibilidade de qualquer outro sentimento que não o da empatia com o sofrimento do filho velando o sofrimento da mãe, internada no hospital sem poder receber visitas. 

A mãe de Jihad Al-Suwait, de 30 anos, era uma senhora idosa e já vinha sofrendo de um câncer. Ela teve de ser internada no início de julho. A família foi impedida de entrar no hospital devido ao risco de contaminação pela covid-19. O filho a visitou todos os dias até a sua morte, no dia 16 daquele mês. Todos os dias, escalava as paredes externas do hospital até a janela do terceiro andar para acompanhá-la pelo lado de fora do quarto onde ela estava.

Situada na Judéia, Hebrom é a maior cidade da Cisjordânia e é considerada sagrada por judeus, cristãos e muçulmanos. Hebrom significa "confederação", no sentido de amizade, aliança. Palco de vários eventos históricos, é conhecida sobretudo pelos fatos ligados a Abraão.  

Não muito longe do hospital onde Jihad ia visitar a mãe fica o Túmulo dos Patriarcas. Para os judeus o lugar é chamado Me-arat Hamachpelah, em hebraico, o que significa "o túmulo das duplas sepulturas" e, segundo a tradição, lá estão enterrados casais bíblicos importantes. Em Gênesis 49: 29-31, acompanhamos a expressa recomendação de Jacó aos filhos no leito de morte: - "Eu me congrego ao meu povo; sepultai-me com meus pais, na cova que está no campo de Efrom, o heteu". E ele argumenta: "Ali sepultaram a Abraão e a Sara sua mulher; ali sepultaram a Isaac e a Rebeca sua mulher; e ali eu sepultei a Léa." Os árabes o denominam Haram el Khalil, "o lugar sagrado do amigo (de Deus)", Abraão.

Kalil significa "amigo", "amigo chegado", "camarada honorável". A expressão é usada quando se fala de alguém muito estimado. Aquele a que me refiro no início da crônica era um destes; e também era esse o seu nome. Por conta de um tabelião, devem ter mudado para Calil, com C. O pai veio do Líbano, de terras próximas àquelas onde Jihad sentou-se à janela do hospital para ver sua mãe. Nas histórias desses Calil, a mesma ligação forte com o respeito ao umbilical cordão que nos une a um vínculo de identidade familiar, tribal, necessário também a um sentimento de pertencimento e transcendentalidade. Ao perguntar suas origens, a resposta é a mesma: - De onde viemos? Das montanhas, claro! Descendentes dos fenícios da cidade de Jounieh! 

Para além da simbologia religiosa e histórica, ritos de passagem são importantes para a nutrição dos sentimentos da humanidade, uma questão de saúde. Esse tempo gris não tem nos deixado exercer o sagrado direito a um adeus. Não consegui me despedir desse amigo. Nem do Henrique, o pai, nem do Chinês, da Simone e do Paulinho...

Mas dentre tantas coisas que o amigo Calil me ensinou, aquela sua maneira de encerrar qualquer encontro. Presumo que tenha aprendido o bordão quando ainda em Santa Maria era conhecido por "Queijo", astro do basquete estadual. Antes de vir a Porto Alegre para exercer a medicina e encontrar a Gi. Provavelmente o ouvira em ondas radiofônicas imigradas da Argentina, entre tangos e chiados. Ele se despedia com um: - "Tchau. E gracias!". 

O agradecimento fazia-se de lenço branco; pode ser útil, garantia de não deixar nada para trás. 

É preciso plantar palmeiras no trajeto e acreditar que crescerão, mas haverá no caminho uma ponte, uma passagem que se ergue sobre o mistério daquilo que não vemos. Que tenha razão o poeta, que a morte não é o fim e nos veremos em sonhos. Contudo é bom estar preparado. Fica como mais uma lição: - Amigo, tchau e gracias

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