A saúde do rei ou de qualquer um
Fernando Neubarth MD
Assim caminha a humanidade. Seria esse o título no Brasil do filme baseado no romance Giant da escritora norte-americana Edna Ferber e que o jornal carioca Última Hora, de 11 de agosto de 1955, noticiava como um novo encontro entre o diretor George Stevens e a atriz Elizabeth Taylor, tão bem valorizada por ele em Um lugar ao sol (1951).
Na mesma edição, a foto do faquir Silki - Adelino João da Silva, gaúcho de São Francisco de Paula, famoso por seus espetáculos por todo o país e no exterior - ilustrando matéria sobre a fome no país; o clima de luto com a chegada no dia seguinte, procedente de Hollywood, do corpo de Carmen Miranda à capital federal; o drama vivido por Goa em luta por libertação de Portugal e anexação à Índia e outras notícias recorrentes sobre a política nacional, tentativas de golpe, crise financeira, atrasos no pagamento do funcionalismo. Nada de novo sob o sol, diria o rei Salomão.
Em matéria destacada, o presidente da Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR), Décio Olinto, discorria sobre a importância do Congresso Panamericano de Reumatologia, o primeiro PANLAR, a realizar-se de 14 a 20 daquele mês em São Paulo e no Rio de Janeiro e alertava sobre o impacto social e econômico das doenças reumáticas, fazendo questão de frisar que fazia clínica médica e não era “reumatologista”, tendo sido escolhido pela confiança dos colegas.
Mas, já na capa, a Última Hora também ostentava: ”A Suécia está ganhando a luta contra o reumatismo”. Anunciada pelo repórter que foi entrevistá-la no Galeão como “a médica do Rei Gustavo”, Nanna Svartz (Foto), então com 65 anos, responsável pelo desenvolvimento da Salopyrina (Sulfassalazina) em 1941, fora convidada para participar do evento. Waldemar Bianchi, um dos fundadores da SBR, então secretário geral do “conclave”, foi ao aeroporto para recebê-la com a devida vênia.
Em 1937, Nanna Svartz assumira a cadeira de professora de medicina no Instituto Karolinska; somente em 1963 outra mulher seria aprovada. Ela foi a primeira e única por muitos anos. Sua aceitação se deu após um exaustivo processo de investigação, testemunhos, debates e acusações. A controvérsia constituiu-se apenas em uma razão: era “uma mulher”. Especializada em doenças do aparelho digestivo, e também em patologias articulares, manteve a clínica privada, paralelamente ao seu trabalho no Hospital Serafimer em Estocolmo e no Instituto Karolinska, demonstrando notória capacidade de administração em saúde. Focou suas pesquisas em três áreas principais: inicialmente teve seu interesse voltado para o estudo de bactérias anaeróbias intestinais, ao final dos anos 1930 iniciou pesquisas que levaram à síntese da sulfassalazina e, com o apoio do Instituto de Pesquisa Rei Gustavo V, direcionou seu trabalho investigativo para o Fator Reumatoide. Publicou seu primeiro artigo científico em 1913, quando era uma estudante de medicina no terceiro ano e o último em 1980, com 90 anos. Faleceu em 1986, tendo alcançado 96 anos, reconhecida e laureada por sua trajetória
Passado tantos anos, a presença feminina na medicina e, particularmente na reumatologia, não mais surpreende e domina o cenário. Há muitos exemplos de bem sucedidas carreiras, tanto na assistência quanto no ensino e pesquisa, assumindo postos relevantes.
Uma recente polêmica envolvendo uma jovem profissional e o vazamento de informações sobre a saúde de uma paciente, num turbilhão de questões envolvendo mídia, sigilo e ética médica, maniqueísmos políticos, ausência de bom senso, falta de respeito, de compaixão e outras perversas e frívolas atitudes faz lembrar a resposta dada por Nanna Svartz ao repórter interessado mais no fato dela cuidar da saúde do monarca sueco do que em tudo que viera compartilhar naquele primeiro Congresso PANLAR sobre os avanços no campo da reumatologia. - E o Rei Gustavo, como está? - insistia ele. Com tranqüila condescendência, Nanna Svartz respondeu: – O Rei vai passando bem, obrigado!
Ela sempre lutara contra preconceitos e soube desarmar aquele jornalista "encantado" pela oportunidade de entrevistar a "médica de um rei". Aprendera desde cedo, foi assim que tornou-se a primeira professora de medicina no seu reino. Desde estudante fizera sucesso e para sempre lembraria o que o seu pai, orgulhoso, na ocasião comentara: "Nanna tem quase tanto talento quanto um homem". Aquele talvez tenha sido o maior elogio que ele poderia dar a ela.
Nanna Charlotta Svartz (1890-1986). Médica, professora, cientista. Mulher. Uma gigante a ser sempre reverenciada.
Foto : Website Karolinska Institute https://ki.se/en/about/nanna-svartz-1890-1986