Memorial de Epidemias
Fernando Neubarth MD
Era menina ainda e na casa onde servia, uma família de gente do campo onde haviam relações que remontavam ao tempo dos seus avós e de escravidão, mandaram que fosse às imediações da Rua da Praia para buscar encomendas à uma modista, vestidos de sua patroa e outros consertos de vestuário. Foi no trajeto, já perto do destino, que experimentou a sua primeira crise epiléptica. Ninguém a acudiu e deitada no chão da via, inconsciente, foi confundida com uma das vítimas da Gripe e despertou, já na Azenha, entre um amontoado de corpos numa carroça que iniciava a íngreme lomba do cemitério.
Um sorriso maroto e iluminado pelo brilho de olhos antes baços e velados de catarata, servia de fecho à história que ainda nos divertia com detalhes do susto que também teve o carroceiro. Um improvisado condutor de enterros, que passada a surpresa a envolvera com um abraço acolhedor e que por essas maquinações do destino seria seu companheiro. Por décadas, até que a morte, dessa vez com determinação, o levara embora.
Sobre a Gripe Espanhola, transcrevo trechos de descrição de nosso maior memorialista, Pedro Nava (1903-1984), médico reumatologista, um dos precursores da especialidade no Brasil, tendo sido também presidente da Sociedade Brasileira de Reumatologia e da Liga Panamericana de Associações de Reumatologia – a PANLAR. No livro Chão de Ferro, publicado em 1976, Nava descreve com maestria e rara erudição lembranças pessoais da pandemia que chegou ao Brasil em 1918.
[...] “A literatura médica está cheia da descrição de surtos epidêmicos de que alguns assumiram aspecto pandêmico, assolando todas as grandes aglomerações humanas, como o de 1733, que marca a primeira passagem oceânica de mesma epidemia propagada da Europa à América; os de 1837, 1847, 1889 e finalmente o de 1918 que varreu o mundo, causando maior número de mortes que a Primeira Grande Guerra. […] Não, seus pais não foram a Conflagração Europeia e o Imperador Guilherme II. Ela nasceu da influência, desta coisa imprecisa, desprezada pelos modernos mas entretanto existente que são as coincidências telúricas, estacionais e atmosféricas responsáveis pela chamada constituição médica de determinadas doenças no tempo a constitutio dos clássicos […] que aparece em vários trechos de Hipócrates exprimindo as vicissitudes dos ares, dos lugares, das estações e sua responsabilidade na gênese das moléstias. Pois o sínoco de catarro, influenza, gripe ou como queiram chamá-la, a espanhola instalou-se entre nós em setembro e cresceu no fim deste mês e nos primeiros do seguinte”.
[...] “Synochus catarrhalis era o nome de uma doença epidêmica, clinicamente individualizada desde tempos remotos e que periodicamente, cada vez com maior extensão, assola a humanidade. Essa extensão está relacionada à velocidade sempre crescente das comunicações. Seu contágio já andou a pé, a passo de cavalo, a velocidade de trem de ferro, de navio e usa, nos dias de hoje, aviões supersônicos espalhando-se pelo mundo em dois, três, quatro dias. Quando passou pela Itália (na epidemia de 1802 que tão duramente castigou Veneza e Milão), recebeu o nome que fez fortuna: influenza. O termo pegou, passou para a linguagem corriqueira e lembro de tê-lo ouvido por minha avó materna, em Juiz de Fora […]. O nome “gripe” vem do meio do século passado e foi primeiro empregado por Sauvages, de Montpellier, tendo em conta o aspecto tenso, contraído, encrespado, amarrotado – grippé- que ele julgou ver na cara de seus doentes”.
[...] “A doença irrompeu aqui em setembro, pois em fins desse mês e princípios de outubro, as providências das autoridades abriram os olhos do povo e isto explicou certas anomalias que vinham sendo observadas na vida urbana: tráfego rareado, cidade vazia e meio morta, casas de diversão pouco cheias, conduções sempre fáceis, as regatas, as partidas de water-polo e futebol quase sem assistentes, as corridas do Derby e do Jockey com aficionados reduzidos ao terço […]. Comecei a sentir o troço numa segunda-feira de meados de outubro em que, voltando ao colégio, encontrei apenas onze alunos do nosso terceiro ano de quarenta e seis. Trinta e cinco colegas tinham caído de sábado para o primeiro dia da semana subsequente. Chegamos ao colégio às 9 horas. Ao meio-dia, dos sãos entrados, já uns dez estavam tiritando na Enfermaria”.
[...] “Tornou-se calamidade de proporções desconhecidas nos nossos anais epidemiológicos nos dias terríveis da segunda quinzena de outubro e sua morbidade e mortalidade só baixaram na ainda trágica primeira semana de novembro […]. Conforme as condições do terreno, segundo a resistência dos indivíduos ou o point d’appel de sua zona mais fraca a influenza apresentava-se assim benigna, ou assumia as fisionomias que foram chamadas de pneumônica, broncopneumônica, gastroentérica, coleriforme, nevrálgica, polineurítica, meningítica, meningoencefálica, renal, astênica, sincopal e fulminante. Era apavorante a rapidez com que ela ia da invasão ao apogeu, em poucas horas, levando a vítima às sufocações, às diarreias, às dores lancinantes, ao letargia, ao coma, à uremia, à síncope e à morte em algumas horas ou poucos dias. Aterrava a velocidade do contágio e o número de pessoas que estavam sendo acometidas. Nenhuma de nossas calamidades chegará aos pés da moléstia reinante”.
[...] “O terrível já não era o número de causalidades mas não haver quem fabricasse caixões, quem os levasse ao cemitério, quem abrisse covas e enterrasse os mortos. O espantoso já não era a quantidade de doentes, mas o fato de estarem quase todos doentes e impossibilitados de ajudar, tratar, transportar comida, vender gêneros, aviar receitas, exercer, em suma, os misteres indispensáveis à vida coletiva. Como na calamidade de Paris, em 1889, quando a gripe atingiu ao leito dois terços da população, no Rio a doença surgiu e derrubou, numa grande gala hedionda, quatro quintos dos cariocas no chão, na cama ou na enfermaria dos hospitais. Competiu aos vinte por cento restantes, de convalescentes ou sãos, aguentar a cidade que vacilava à beira do colapso […]. Além da fome, da falta de remédio, de médicos, de tudo, as folhas noticiavam o número nunca visto dos doentes e cifras pavorosas do obituário. As funerárias não davam vazão, havia falta de caixões. Até de madeira para fabricá-los, ao ponto dum carpinteiro do subúrbio atender encomendas fazendo os envelopes com tábuas do teto e do soalho de sua casa”.
[...] “Quando ataúde havia, não tinha quem os transportasse e eles iam para o cemitério a mão, de burro-sem-rabo, arrastados ou atravessados nos táxis. No fim os corpos iam em caminhões, misturados uns aos outros […]. Havia troca de cadáveres podres por mais frescos, cada qual querendo se ver livre do ente querido que começava a inchar, a empestar. No agudo da epidemia, num dia em que não havia mais jeito de transportar tanto morto, o Chefe de Polícia já dava o desespero quando a solução veio do Jamanta, o célebre folião do Carnaval carioca. […] Ele conhecia, admiravelmente, o seu Rio de Janeiro e por um desses caprichos de boêmio, aprendera em passeatas noturnas, a dirigir bondes. Pediu e obteve dos seus superiores um bagageiro e vasculhou com eles a cidade de norte a sul […]. Bonde e reboques cheios de caixões empilhados e de amortalhados em lençóis, o motorneiro solitário batia para o (cemitério do) Caju. Descarregava. O dia já ia alto, mas ele voltava e varejava Laranjeiras, Flamengo, Botafogo, Jardim Botânico, Ipanema, Copacabana pegando mais defuntos. Lotava. Já noite, passava a sinistra composição como o Trem Fantasma ou o navio de Drácula entupida da carga para o (cemitério) São João Batista. Fez isso uns dois ou três dias que marcaram para sempre sua lembrança”.
Reportando aos relatos de Nava, diria que aquela minha paciente teve sorte, afinal. Ela pode inclusive beneficiar-se com os avanços que a ciência proporcionou ao tratamento da epilepsia, doença com a qual conviveu bem e que de maneira algo caprichosa a fez conhecer o amor nos tempos da Espanhola. Devido à idade, não chegou a alcançar as muitas cenas que a covid-19 fez repetir, com atroz similaridade, em dias ainda presentes e sombrios e que ficarão indeléveis na nossa memória de sobreviventes.