Coluna
Escuchar
Pause
Play
Stop

A menina que conversava com o apito do trem

Por : Fernando Neubarth
Médico e escritor. Especialista em Clínica Médica e Reumatologia. Chefe do Serviço de Reumatologia do Hospital Moinhos de Vento. Presidente da Sociedade Brasileira de Reumatologia/SBR 2006-2008. Presidente do Conselho Consultivo da SBR.



10 Novembro, 2023

https://doi.org/10.46856/grp.22.ept180
Cite as:
Neubarth F. A menina que conversava com o apito do trem | Global Rheumatology. Vol 4/ Jul - Dic [2023] Available from: https://doi.org/10.46856/grp.22.ept180

"Os avanços da ciência permitem perspectivas melhores para quem tem doenças reumáticas. Uma realidade diferente da vivida pela artista Maud Lewis, que transformou seus horizontes pela arte."

Visualizações 518Visualizações

E- ISSN: 2709-5533
Vol 4 / Jul - Dic [2023]
globalrheumpanlar.org

Coluna

A menina que conversava com o apito do trem

Autor: Fernando Neubarth: Especialista em Clínica Médica e Reumatologia. neubarth@terra.com.br

DOI: https://doi.org/10.46856/grp.22.ept180

Citar como: Neubarth F. A menina que conversava com o apito do trem | Global Rheumatology. Vol 4/ Jul - Dic [2023] Available from: https://doi.org/10.46856/grp.22.ept180

Data de recebimento: 15 de outubro / 2023
Data aceita: 9 de novembro / 2023
Data de Publicação: 10 de novembro / 2023


A canadense Maud Lewis nasceu no hospital de Yarmouth em 7 de março de 1903. Criada na pequena vila vizinha de South Ohio, viveu a maior parte de sua vida adulta perto de Digby, na vila de Marshallstown. A distância entre as duas cidades é de pouco mais de cem quilômetros, estendendo-se ao longo da Baía de Fundy, na costa mais remota da Nova Escócia.

Do jardim de sua casa, a menina avistava os trilhos dos trens que faziam o percurso entre Digby e Yarmouth, duas das maiores cidades do sudoeste da península banhada pelo Oceano Atlântico. Ela acenava para os trens, e era uma felicidade quando os maquinistas correspondiam e apitavam de volta. De longe, suas deformidades não eram visíveis e assim se tornava possível aquele diálogo entre ela e o mundo ao redor.

Apesar da artrite reumatoide juvenil grave e incapacitante, viveu pela arte.

O início exato de sua doença é desconhecido. Em uma foto aos quatro anos, ela aparenta ser uma criança saudável, mas alguns anos depois outra foto já mostra sinais típicos da enfermidade; a doença aproximou o queixo de Maud ao pescoço, e ela esconde as mãos afetadas.

As artrites crônicas da infância, como a de Maud Lewis, ainda não têm causa conhecida. Fatores imunológicos, genéticos e infecciosos estão envolvidos. Sabe-se que há uma certa tendência familiar e que alguns fatores externos, como certas infecções virais e bacterianas, estresse emocional e traumatismos articulares, podem atuar como desencadeantes da doença. Atualmente, o tratamento mais precoce e adequado, multidisciplinar, é focado no controle da doença e em medicamentos que auxiliam na redução da inflamação, melhora da dor e manutenção das habilidades funcionais. O objetivo é alterar o avanço da doença e minimizar o comprometimento do crescimento e do desenvolvimento físico e emocional normais.

Maud não completou seus estudos, apesar de sagaz e interessada. As outras crianças a ridicularizavam tanto que o caminho de 20 minutos entre casa e escola era ainda mais penoso pelas lágrimas não contidas. A menina tímida e alvo de bullying dos colegas passou a ficar em casa com a mãe; dela, recebia aulas de arte e juntas faziam cartões de felicitações para vender. Esse isolamento e estímulo à criatividade influenciaram o trabalho posterior de Lewis como artista folk. Ela não apenas aprendeu a pintar e desenhar, também passou a conviver com a solidão em atividades criativas.

À medida que a doença progredia, Lewis tornou-se mais incapacitada. A artrite interrompeu seu crescimento e, ao longo de sua vida, Maud permaneceu do tamanho de uma criança. Seus ombros ficaram anormalmente inclinados, suas costas, curvadas e torcidas, e nódulos reumatoides deformaram suas mãos. Ela usava a mão esquerda, menos afetada, para sustentar o braço e poder pintar com a mão direita.

O trabalho de Maud Lewis não mostra nada de suas dificuldades ou da dor da artrite. Ao invés disso, ela retrata um mundo ensolarado de bois e flores, pássaros azuis, gatos e borboletas.

Estas são memórias do interior da Nova Escócia da infância de Maud, marcada fortemente pelas estações do ano e por sua imaginação. Nascida Maud Dowling, ela se casou aos 34 anos com Everett Lewis, um vendedor ambulante de peixes. Moravam juntos em uma casinha de um cômodo de três metros quadrados com um mezanino, mas sem encanamento ou eletricidade. Durante os primeiros anos de vida de casados, eles saíam no carro de Everett; Maud vendendo seus cartões de felicitações e seu marido vendendo peixes. À medida que a artrite progredia, isso se tornou mais difícil. Ela ficava em casa pintando e anunciava sua arte com uma placa adornada e bem à vista de quem passava pela estrada.

Por causa de sua aparência, Maud Lewis sofreu preconceito pelo resto da vida. Seu biógrafo, o escritor Lance Gerard Woolaver, que também é do Condado de Digby, relata que, quando criança, ele comparava Lewis com a bruxa de João e Maria, e se esconderia numa vala se a visse subindo a estrada. Só mais tarde, já adulto, ele foi capaz de apreciar a beleza da arte de Maud, superando o preconceito e percebendo o quanto ela era uma pessoa iluminada.

Além das pinturas, Lewis decorou peças da casa, panos de prato, pás de lixo, conchas e quase todas as superfícies da casinha por dentro e por fora. E desenhava flores nas vidraças. As pessoas que adquiriam seus trabalhos contavam a outras pessoas sobre ela. Começou a aparecer em matérias de jornais e revistas e em programas da TV. Suas obras pintadas, incluindo a casinha decorada, agora fazem parte da coleção permanente da Art Gallery of Nova Scotia. Numa entrevista, questionada como ela conseguiu tudo isso com uma doença dolorosa e debilitante, Lewis respondeu, sorrindo:

– Enquanto eu tiver um pincel na minha frente, estarei bem.

Maud morreu em 30 de julho de 1970, aos 67 anos, na pobreza, embora já conhecida e com fama nacional. Ela superou graves desafios físicos para criar um estilo artístico único. Embora raramente saísse de sua pequena casa, suas obras viajaram por todos as partes do globo e, nas décadas que se seguiram à sua morte, tornou-se uma figura icônica, um símbolo da Nova Escócia, personagem amada na imaginação e na arte popular. É uma das artistas mais renomadas do Canadá, tema de inúmeras monografias, romances, peças de teatro, documentários e até de um longa-metragem (Maudie, de 2016, protagonizado pela atriz Sally Hawkins).

A menina que foi permanece naquele longínquo espaço de seu jardim, acenando para os trens que passam. Seus sonhos, no entanto, embarcaram e seguem. A visão das imagens alegres da natureza e da vida no campo que a encantaram e aliviaram o seu sofrimento mantém a potência benfazeja de um colírio balsâmico para os olhos do mundo.

enviar Envía un artículo